Recentemente um profissional da “dita saúde mental” escreveu que a falta de leitos para o tratamento de doentes mentais era uma discussão irrisória, menor e porque não desnecessária, ou seja: não há necessidade de leitos para o tratamento dos doentes. Insulto maior que este só a afirmação de que não há doença mental, mas o que existe é uma forma diferente do ser humano pensar, existir e comportar-se no meio social e, portanto, não necessita de tratamento.
E ,mais ainda, é a sociedade que exclui, que rejeita o doente, portanto é a sociedade que está doente e... Não corresponde ao consenso da Associação Brasileira de Psiquiatria, onde se respeita, protege e trata da pessoa doente, sempre tentando deixa-la integrada à família e à sociedade, não a privando de suas vontades.
Nos países desenvolvidos há recomendação de que haja 1 leito para cada 1000 habitantes. No Brasil de uma forma irresponsável, impetrada por leis menores ou portarias (desrespeitando a Lei 10.216/2001), o Ministério da Saúde estabeleceu 0,45 leitos para cada 1000 habitantes. Surpreendentemente no Estado de Mato Grosso do Sul, a média é menos de 0,20 leitos por 1000 habitantes.
Isto porque como em toda especialidade médica existem doenças de intensidade leve, intensidade moderada e intensidade grave. Existem doenças que trazem risco para a vida e outras que não; doenças que saram de tudo e as que deixam sequelas; doenças que só se apresentam uma vez e doenças que são crônicas. E os leitos devem ser destinados aos pacientes com quadros agudos, pacientes com quadros graves decorrentes de dependência química e ainda pacientes com risco suicida.
No mais das vezes as sequelas que ficam são prejuízos em que as instâncias da memória são prejudicadas, não permitindo ao paciente gravar informações, ou não fazendo associações ou recordações de eventos passados. Pode haver desorientação no tempo e no ambiente, podendo apresentar condutas inadequadas, agressivas e sem a percepção de tudo isso.
Parcela da população de (na) rua é de pacientes com os sintomas residuais - e não de doentes mentais em episódios críticos - que não são tratados seja por não terem acesso aos serviços de saúde - por pobreza, por desinteresse familiar, por desconhecimento, e, lamentavelmente por profissionais malformados, que ignoram ou desconhecem a doença mental - ou por ideologia. E, infelizmente, ninguém é responsabilizado por isto.
Assim algumas perguntas se fazem necessárias: Será que somos muito mais desenvolvidos que os países da Europa e dos EUA, que necessitam de maior quantidade de leitos? Será que a nossa organização política, econômica educacional é mais desenvolvida que a dos países europeus? Será que descobrimos algum fator que tem influenciado a nossa população e com isto contrariando pelo menos 35 séculos de conhecimentos. Não há doentes mentais?
O que está acontecendo é algo de uma lógica cruel e criminosa. A Saúde Mental Pública segue a lógica descompromissada e perversa. Enquanto o Poder Público constituído envida todos os esforços para “fechar” o Hospital Nosso Lar e o Serviço de Psiquiatria da Santa Casa, onde nos últimos anos houve a redução de mais de 50% dos leitos, sem que houvesse qualquer preocupação com o destino dos pacientes, que necessitam de leitos hospitalares, nem a preocupação em buscar a resolução da assistência.
O CAPS é um equipamento importante; mas ele não substitui o leito hospitalar. É o local para a equipe multiprofissional para reabilitação, reinserção social, pode até servir de local de controle medicamentoso. Mas não é o local indicado para os quadros de agitação psicomotora agudos, pacientes com quadros psicóticos ou ainda pacientes com ideação suicida.
Para estes pacientes o CAPS é iatrogênico, apesar das opiniões do Ministério da Saúde e seu conjunto de técnicos que, obviamente, não têm vivência clínica e são comandados por ideologias. Aliás, ideologias estas que já foram analisadas, criticadas em seus países e reconsideradas. Hoje nesses países já estão sendo construídos ou reformados hospitais de pequeno e médio porte com toda a tecnologia e equipes treinadas. Novamente estamos na contramão da história e da assistência.
E o que está acontecendo em nossa cidade?
Os pacientes graves são atendidos ou são encaminhados pelo Corpo de Bombeiros e pelo SAMU para os CRS ou UPAS e lá são atendidos, medicados (sedados) e permanecem lá à espera de vaga no CAPS III Aero Rancho, hoje o Pronto Socorro Psiquiátrico e de lá, caso consigam vaga na rede hospitalar pública especializada, são encaminhados para a Santa Casa, Hospital Nosso Lar e Hospital Regional de Mato Grosso do Sul (HRMS).
Cabe esclarecer que a Santa Casa conta com 18 leitos para psicóticos e deprimidos graves; o Hospital Nosso Lar hoje tem apenas 30 leitos pagos pela Prefeitura Municipal de Campo Grande, todos destinados a psicóticos e deprimidos, crônicos ou reagudizados); o HRMS tem 12 leitos, todos oferecidos à grande parcela de dependentes químicos).
Em não havendo estas vagas os pacientes permanecem nos CRS, nas UPAS, recebem a visita da Equipe Móvel de Psiquiatria que orienta a medicação, esperando a estabilização do quadro clínico com a diminuição da agitação psicomotora ou da agressividade. Acontecendo isso, independente da doença e desconsiderando a história clínica do indivíduo enfermo, o mesmo é liberado...sem condições de continuidade terapêutica, tendo em vista a ausência de locais para referenciamento ou seguimento imediato.
Estes pacientes, que necessitam continuar internados e não o fazem, não conseguem de forma rápida a continuidade terapêutica, levando comumente de 60 a 90 dias para conseguir uma consulta. Nesse período é comum ter uma recaída ou agudização dos sintomas anteriores e retornarem ao sistema cíclico de tentativa de tratamento: Crise - Corpo de Bombeiros/SAMU - CRS/UPA - Equipe Móvel - Residência.
A equipe móvel de Psiquiatria avalia o paciente e o medica, indicando a espera de vaga hospitalar. Quando permanece o estado agitacional, muitas vezes com comportamento auto ou heteroagressivo e sem perspectivas de disponibilidade de leito na rede hospitalar, parece haver a cultura de “soltar ou deixar fugir” o paciente pela dificuldade de manejo da equipe enquanto aguarda a transferência do mesmo. Resultado: mais um doente de rua.
Como esses pacientes não foram registrados como pacientes psiquiátricos, como não foram encaminhados para os estabelecimentos psiquiátricos hospitalares, legalmente esses pacientes “não existem” e os gestores da Saúde Mental argumentam a desnecessidade da existência de leitos, dando continuidade à perversidade da subnotificação ao Sistema Único de Saúde da necessidade de leitos psiquiátricos. Não consideram a falta de local ou regional para reformular a assistência necessária.
Ocorre, então, a “fraude” o não registro, como se não houvesse necessidade de atendimento hospitalar. Logo não havendo AIH (Autorização de Internação Hospitalar), não houve o uso de leito, não houve a internação e, portanto não há a necessidade de leitos psiquiátricos. Isso é fraude e um duro golpe contra a população.
Por fim, os responsáveis (ou irresponsáveis) por essa anti-Lei, anti resoluções, transferem a responsabilidade de todo esse caos para os familiares ou, mais recentemente, aos profissionais da equipe multidisciplinar – Técnicos de Referência, cobrando dos mesmos os cuidados aos pacientes e a solução de seus problemas mentais, tirando da equipe uma das ferramentas necessárias para muitos casos: o leito.
É tão absurdo isso que seria como se apenas orientássemos os familiares de pacientes que estão em curso de um quadro de infarto agudo do miocárdio; ou pacientes que estão com fratura exposta logo após um acidente de trânsito; ou pacientes com uma úlcera gástrica sangrando..... que devem ficar em casa sob os cuidados da família, esperando que com a vontade da pessoa doente e dos seus familiares e, logicamente, com a “força do pensamento positivo”, os problemas possam ser resolvidos.
Os pacientes nas UPAS, com muita frequência, ficam sedados, contidos, sem roupas e sem comida, malcuidados e com a equipe transferindo aos familiares toda a responsabilidade por isso.
Pior que o crime tipificado pela falta de leitos, pela falta de equipes, pela falta de estrutura, são os Criminosos, que aqueles “responsáveis” pela população, que nada fazem para a melhora da situação, que tratam os pacientes como indigentes – indignos de ser gente; “marginais’’ e ‘marginais sociais’,’ e os seus familiares como ‘cúmplices”. Assim o fazem ou por ideologia, ou por má fé.
Tomara que estejamos enganados e que isso apenas seja permitido pelo Poder Público não por ideologia ou má fé, mas por simples desconhecimento. E se assim o for, colocamo-nos à disposição para os esclarecimentos necessários para que possamos usufruir dos princípio éticos fundamentais: a beneficência e a não maleficência. Tudo em prol do ser humano doente, nossa maior preocupação, acima de qualquer ideologia.
Câmara Técnica de Psiquiatria
CRM MS
04.05.16
Publicado 27 de Janeiro, 2016